Segundo o Manual de Vigilância das DTA do Ministério da Saúde (2010), entre os agentes microbiológicos cujo período de incubação e cujo quadro clínico mais se aproximariam aos encontrados neste surto poderiam ser incriminados: Vibrio cholerae, Escherichia coli patogênica, Salmonella spp, Shigella, Vibrio parahaemolyticus, Vibrio vulnificus, Campylobacter spp, Plesiomonas shigelloides e Aeromonas hidrophila.

A exposição pessoa-a-pessoa observada em surtos de diarreia mais prolongados e que costumam estar associados a ação de agentes virais como o rotavírus e o norovírus foi inicialmente descartada, devido à baixa prevalência de febre, que é comum nos quadros clínicos causados por estes agentes. A longa duração do surto, bem como, a dificuldade de incriminar estatisticamente um alimento específico suscitou a possibilidade de exposição continuada (por longo período) a uma fonte comum nesta empresa de móveis e que não era necessariamente alimentar. Levando em conta apenas estas considerações e diante da inexistência de dados laboratoriais (análise da água, bromatologia dos alimentos, coprocultura dos doentes e a anamnese dos manipuladores), que ainda estavam em processo de investigação, foi levantada a hipótese da água ser a provável fonte de exposição deste surto.

No dia 25 de janeiro, as equipes da Vigilância Sanitária (VS) e da Vigilância Ambiental (VA) deslocaram-se até a empresa de móveis para realizarem as averiguações necessárias.

Os fiscais da VS se dirigiram até a empresa no dia 25/01 a fim de:

Fazer o levantamento dos ingredientes usados nas refeições, bem como, o inquérito do “passo a passo” do preparo de cada alimento servido, conforme descrito nos Registro das Condições de Preparo e/ou Consumo do(s) Alimento(s) Suspeito(s). Neste processo foram verificados alguns problemas no preparo dos alimentos:
- ausência de registros de controle temperatura dos alimentos na linha de distribuição (buffet) e na sua produção (não havia descrição do horário e/ou turno das temperaturas);
- falta de registros sobre os fornecedores, marcas e condições de transporte para a maioria dos alimentos e ingredientes usados, devido à alta “rotatividade” de fornecedores e marcas;
- entrega da carne de gado na cozinha em veículo sem refrigeração, estando disposta em sacos plásticos no interior de caixas plásticas;
- higienização dos alimentos “in natura” (vegetais) com água corrente das torneiras da cozinha, mesmo diante da constatação da alteração da sua turbidez.
Realizar a coleta de amostras das refeições servidas nos almoços e jantares dos dias 22 a 24/01. No entanto, não haviam mais amostras disponíveis das refeições servidas no dia 22/01. As amostras coletadas foram enviadas ao LACEN. Das 42 amostras de alimentos enviadas, 19 não foram analisadas. O critério para análise considerou os alimentos que apresentaram as maiores taxas de ataque. Os resultados das análises laboratoriais dos alimentos não detectaram a presença de nenhum dos agentes microbiológicos testados (Salmonella spp; Escherichia coli, Estafilococos coagulase positiva, Clostrídios sulfito redutores e Bacillus cereus).
Realizar coprocultura dos funcionários - foi possível coletar amostras de apenas três comensais.
Realizar pesquisa de rotavirus nas fezes - foi possível coletar amostras de apenas cinco comensais. As coproculturas foram realizadas em laboratório privado do município de Flor da Serra e os laudos foram disponibilizados no mês de fevereiro. A pesquisa de rotavírus foi realizada no Laboratório Central do Estado (LACEN) e os laudos foram disponibilizados no mês de maio.
Realizar coprocultura e swab subungueal de todos os manipuladores, num total de 12 pessoas envolvidas no preparo dos alimentos servidos no almoço e no jantar. Em relação aos laudos das coproculturas, não houve crescimento de enterobactérias patogênicas nas amostras de nenhum dos manipuladores. Todos os swabs subungueais resultaram negativos para Staphylococcus coagulase positiva. Presença de Streptococcus beta hemolítico em uma manipuladora de alimentos e de diversos cocos gram-positivos em outra - a VS solicitou o afastamento imediato dessas duas manipuladoras. Elas deveriam ser tratadas e um novo exame, pós-tratamento, deveria ser feito. Os novos resultados dos exames das manipuladoras não acusaram enfermidades graves, de modo que elas obtiveram autorização para retornar às suas atividades.
Solicitar os alvarás sanitários e outros documentos de adequação à legislação sanitária aos responsáveis da empresa que produzia as refeições dentro de um prazo de 24 horas. A demanda foi atendida pela empresa dentro do prazo, sendo lavrado um Termo de Vistoria, atestando a entrega dos documentos. Após análise da documentação, observou-se que nem todos os documentos entregues estavam de acordo com a legislação, como por exemplo, a formulação dos Procedimentos Operacionais Padronizados.

No dia 25/01, durante a vistoria inicial da cozinha e do refeitório, a nutricionista responsável informou aos fiscais sanitários que a água proveniente do encanamento da empresa de móveis apresentava-se turva. Ela também mostrou aos fiscais três copos contendo água, antes e após a fervura. Por essa razão, a cozinha passou a utilizar água mineral no preparo das refeições.

Por conseguinte, as ações dos técnicos da VA foram focadas no abastecimento de água da empresa, coletando e analisando as amostras da água. Em síntese, foram realizadas coletas de água na empresa em três dias diferentes: em 25/01 (durante a vigência do surto) e em 05/02 pelo laboratório privado contratado pela empresa; e, em 30/01, pelos técnicos da Vigilância Ambiental da Secretaria Municipal de Saúde (análise feita pelo LACEN). As coletas dos dias 30/01 e 05/02 foram realizadas após a limpeza das caixas d’água.

Os achados das análises do laboratório privado foram disponibilizados no dia 06/02/2021 e as alterações constatadas na água foram fundamentais para as equipes de Vigilância em Saúde do município redefinirem as hipóteses sobre as fontes de exposição e sobre os agentes etiológicos do surto. Eles também ajudaram a direcionar as ações de controle e prevenção que deveriam ser orientadas e tomadas para garantir a qualidade da água servida na empresa. O achado microbiológico mais relevante das amostras coletadas no dia 25/01, foi a constatação da presença de Escherichia coli em três bebedouros: do vestiário dos funcionários, da Fábrica 2 e do setor de administração e recepção. Nestes dois últimos setores a concentração de Escherichia coli foi maior que 2.419,6 NMP/ml. Além disso, não foram encontrados coliformes totais em 5 pontos de coleta: do bebedouro e da torneira do vestiário dos funcionários, do bebedouro da Fábrica 2, do bebedouro do setor de administração e recepção e da caixa d’água de 10 mil litros e foram encontradas bactérias heterotróficas acima dos parâmetros 500 UFC/ml nas amostras de água do bebedouro da Fábrica 2, do bebedouro do setor de administração e recepção e da torneira da cozinha (3 pontos de coleta). Relativo às amostras dos cinco pontos de coleta do dia 05/02 (torneira antes do filtro da caixa d’água, caixa d'água de 10 mil litros inferior, caixa d'água de 20 mil litros inferior, filtro antes das caixas d’água e bebedouro do setor administrativo/recepção) havia coliformes totais em quatro amostras, Escherichia coli em uma amostra e bactérias heterotróficas acima dos parâmetros aceitáveis também em uma amostra.

Nas análises da Vigilância Ambiental foram obtidas amostras d’água em 33 pontos de abastecimento da empresa no dia 30/01/2021, após a limpeza das caixas d’água da empresa. A análise qualitativa dessas amostras for realizada pelo LACEN sendo isolados coliformes totais em 11 amostras e Escherichia coli em 10 amostras.

Os técnicos da Vigilância Ambiental inquiriram o técnico de Segurança do Trabalho da empresa a respeito da utilização das duas caixas d’água. Foi observado que a alternância de uso entre as caixas d’água de 10.000 litros e de 20.000 litros não seria frequente, e que a empresa, normalmente, utilizava apenas a caixa de 20.000 litros para o abastecimento de água. Por essa razão, a água da caixa de 10.000 litros ficava “parada” por longos períodos de tempo, sem ser utilizada para o abastecimento. Ele também informou que, na semana em que o surto iniciou, estariam ocorrendo faltas frequentes no abastecimento de água por parte da concessionária, o que teria provocado o rápido esvaziamento da caixa de 20.000 litros, levando à necessidade de utilizar a água (“parada”) da caixa de 10.000 litros, a fim de manter o abastecimento da empresa. Não havia registro da última vez que a água desta caixa havia sido utilizada.

Estas informações levaram cogitar que a origem da contaminação da água poderia estar associada à subutilização da caixa de 10.000 litros e a consequente perda de cloro por evaporação, o que teria favorecido o crescimento da carga microbiológica, em particular, da Escherichia coli e das bactérias heterotróficas, encontradas em diferentes pontos de consumo da empresa. Além disso, a falta de água também poderia estar ocasionando influxos de solo na rede de distribuição.

Foi pontuado que a presença de bactérias heterotróficas na água é um importante indicativo de que ela estaria contaminada por matéria orgânica, uma vez que essas bactérias a utilizam como fonte de carbono para o seu desenvolvimento e multiplicação.

Dentro desse grupo de bactérias, estão inclusos os coliformes fecais, como a Escherichia coli e as demais enterobactérias (Citrobacter e Serratia, por exemplo). Os técnicos da Vigilância Ambiental orientaram o funcionário responsável a utilizar e alternar diariamente as duas caixas d’água para que este fato não ocorresse, novamente.

Durante a vigência do surto e após o seu término, as equipes das VS, VA e VE da Secretaria Municipal de Saúde reuniram-se e compartilharam informações entre si e com a coordenação da Vigilância das DTHA do Centro Estadual de Vigilância em Saúde. Vale ressaltar que a elaboração das hipóteses sobre as prováveis fontes de exposição e os possíveis agentes etiológicos deste surto foram rediscutidas pelas equipes da Vigilância em Saúde do município, a medida em que os dados das avaliações in loco, bem como, as evidências laboratoriais (exames da água, dos alimentos, dos manipuladores e dos doentes) foram sendo disponibilizados.

O surto foi encerrado no mês de julho de 2021, após a avaliação das evidências e da discussão entre os técnicos do município com os da Secretaria Estadual da Saúde considerando:

as análises laboratoriais da água que mostraram a presença de Escherichia coli , coliformes totais e bactérias heterotróficas em diversos pontos de consumo da empresa;
o quadro clínico dos doentes que indicou a prevalência de sinais e sintomas compatíveis com a infecção pela Escherichia coli ;
o longo período de incubação, compatível com a infecção pela Escherichia coli ;
a longa duração do surto (6 dias), que sugeriu a exposição continuada (e não única) dos funcionários a fatores de risco que permaneceram “ativos” por alguns dias;
a utilização da água de um reservatório da empresa (caixa de 10.000 litros) que não era usado com frequência e que conteria água “parada” e que apresentou contaminação por coliformes totais, tanto antes, quanto depois da sua limpeza.

Concluiu-se que o provável agente etiológico do surto seria a Escherichia coli , e a fonte de exposição a água proveniente do reservatório (caixa d´água de 10.000 litros) da empresa (Figura 9). Embora o consumo de água contaminada por Escherichia coli tenha sido considerado a causa deste surto, o inquérito feito pelos fiscais sanitários também encontrou inconformidades na linha de produção dos alimentos servidos, bem como, manipuladores doentes e com infecção nas mãos, o que pode ter contribuído para a extensão do surto. Isso reforça a importância de manter as ações de fiscalização sanitária, independente da existência dos fatores de risco estarem, necessariamente, associados aos alimentos.

Também é oportuno mencionar que a não realização de exames de bromatologia nas amostras dos alimentos servidos in natura (como o alface e outros vegetais) deixou uma lacuna na investigação, uma vez que não foi descartada uma possível contaminação destes produtos que, segundo o inquérito da VS, estavam sendo higienizados com água de aspecto turvo.

Figura 8. Ficha de Investigação de Surto - DTA com campos da conclusão da investigação. Flor da Serra, 2021.

A equipe da VE enfrentou algumas barreiras para a realização da investigação epidemiológica tais como:

A necessidade de entrevistar um grande número de comensais, que demanda à a equipe da VE um número compatível de investigadores ou que o período de entrevistas se estenda por mais tempo.
Dificuldades logísticas e limitações de recursos humanos e financeiros para a coleta dos exames laboratoriais.

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